Capítulo I

O Alto Sertão Baiano

Defronte a Praça da Matriz, ao lado direito da Igreja do Santíssimo Sacramento, avistava-se uma fresta de céu limpo e azul. Aos redores da praça, caminhões despachavam mercadorias, ao mesmo tempo em que mães e crianças aproveitavam o Sol da manhã, que pouco tinha aparecido nesse outono frio de Rio de Contas, na Chapada Diamantina.

Jovens estudantes aguardavam o ônibus amarelo para voltar pra casa, um sabor suculento de sumos ainda adocicava a boca, é o suco natural de morango do recente café da manhã. Uma suave brisa convidativa levava a um passeio por aquela realidade, partindo-se dum cenário imponente de arquitetura colonial à ares rurais, dentre montanhas e rios. Os olhos caminhavam a embarcar vagarosos numa leitura do presente, ao mesmo tempo em que viajavam rumo a um passado ancestral...

“(...)Vos parecia dizer-me convem muito se erija logo no Rio das Contas uma Villa com seo Magistrado não só pelo que respeita à boa arrecadação dos quintos mas pelo que toca a se evitar nos distúrbios e desordens que commettem aquelles moradores como refugiados(...)”, segundo trecho da Carta Régia escrita pelo Vice-Rei de Portugal e Capitão General de mar e terra 'do Estado do Brasil', D. Vasco Fernandes Cézar de Menezes, em  20 de outubro de 1722, ao rei D. João. Ao final do documento, originário do Arquivo Municipal de Rio de Contas, D. Vasco destacou que “não só trateis da erecção d’esta Villa no Rio das Contas logo(...)”, como também de todas as que poderiam “ser úteis e necessárias para maior benefício desse Estado e dos povos Continentes nos sertões delle dando as ditas povoações forma civil e política, por onde se hajão de reger e conservar os moradores dellas em toda paz e quietação”.
Rio de Contas se tornou um importante centro no interior da capitania para o Império Português, que nos fins do século XVII e as primeiras décadas do século XVIII, explorou ricas jazidas de ouro de aluvião às margens dos rios, no Alto do Sertão baiano. O sucesso do bandeirante paulista Sebastião Pinheiro Raposo, pioneiro a encontrar no ano de 1710 ouro abundante ao leito do rio Brumado, logo se alastrou. A boa notícia atraiu para a Bahia e Rio de Contas, entre idas e vindas, muitos forasteiros, inclusive de Portugal, com predominância também dos paulistas e mineiros; todos à procura de enriquecimento rápido, devido à riqueza da região com as minas de boa qualidade. Aos poucos, um povoado aglomerado por bandeirantes e garimpeiros oriundos de vários lugares, com predominância de portugueses, se formou sob o nome de “Mato Grosso”, à 1450 metros de altitude. O atrativo aurífero fez com que a primeira Igreja do Sertão de Cima, construída por escravos no outono de 1718, fosse erguida sob a invocação de Santo Antônio do Mato Grosso, nessa localidade.

No entanto, antes que a euforia portuguesa providenciasse a construção e fizesse História Naquela Vila reluzente a ouro, e antes mesmo que bandeirantes e viajantes pisassem os pés nestas terras ávidas com a missão do incansável garimpo, um grupo de negros já habitava a região, refugiados nas montanhas da Chapada Diamantina. O que o Vice-Rei chama de “moradores fugitivos”, representa o núcleo originário de Rio de Contas. Porque em 1680, a expedição chefiada pelo sargento-mor, Francisco Ramos, quando subia o Rio das Contas, teria encontrado um povoado de negros mocambados, chamados prioritariamente de “Creoulos”. Por se encontrarem numa região privilegiada, na rota de ligação do vale do São Francisco e Goiás com a capital da colônia, o povoado tornou-se ponto de pouso obrigatório dos viajantes, no final do século XVII.
A partir daí, um processo iniciado pelo uso do trabalho escravo como mão-de-obra imprescindível para a exploração aurífera em Rio de Contas, começava a se desenhar. O modelo escravocrata representou a base econômica e social mesmo após o fim do ciclo do ouro, em que a economia tomou por base a produção agrícola ao longo do século XIX , até que a ordem escravocrata fosse completamente abolida em 1888.



A herança desse Contexto Histórico hoje se reflete socialmente quando a geografia e a cultura transparecem duas realidades distintas e ao mesmo tempo intrínsecas, dentre a antiga “vila dos negros”, os dois quilombos de Barra e Bananal, e a “vila dos brancos”, a comunidade descendente de portugueses, Mato Grosso.


Separadas por apenas oito quilômetros de distância, até o ano de 2010 as comunidades não se miscigenaram, na preservação da descendência originária. Na missão de conhecer esses dois universos singulares, a assídua viagem ancestral transforma-se num mergulho rente a contrastes, identidades, cultura, origem e memória, no Alto do Sertão baiano.


DIRETO AO ARRAIAL NEGRO

A ignição soou o barulho do motor que acabava de ligar, já era chegada a hora do ônibus amarelo, que partia às onze e meia de Rio de Contas. Senhoras, jovens, crianças, adultos, negros, brancos, mulatos compunham um mesmo cenário do simples cotidiano, todos assentados e reunidos cada qual nas suas divagações internas, dentre universos individuais e coletivos, a compartilhar a hora prévia e martirizante do almoço. Da janela, via-se a roda passear por aquele chão seco, de barro batido, dentre depressões e desníveis erodidos regados a cascalhos em abundância. Entre 15 e 18 km de distância da cidade, residem dois resistentes, dos três arraiais negros de remanescentes quilombolas: Barra do Brumado e Bananal. Estes perduram em pleno sertão baiano, e o Riacho das Pedras, foi inundado ao ser transformado em 1980 em um grande açude.




No caminho, uma enorme barragem de águas prateadas intercepta a paisagem, e entre nuvens e céu azul, avista-se o Itobira, o pico mais alto da Bahia, à 1970 metros acima do nível do mar. A Ponte do Coronel, por onde passa o rio Brumado, funcionou como ponto de escala na troca de ônibus, por outro que transportava estudantes do ensino médio, vindos de Rio de Contas para a comunidade quilombola de Barra. Enquanto a espera fazia a hora do outro ônibus, o som de água corrente não escondia a beleza por onde passava aquele riacho, intercalado por pedras e floresta de galeria, vegetação característica por cursos d’água. A poeira sinalizava a chegada do ônibus em trepidação constante, e o sol intensificava sua força. Olhares fugazes partiam de vários lados, à busca de identidade, movidos pelo ar curioso. De início um sinuoso silêncio. Passada a mudez, jovens negros, em sua maioria rapazes, retomavam a algazarra no fundo do ônibus, ao mesmo tempo em que deveriam pensar de onde viera aquela presença estrangeira.
Próprio duma estatura alta e físico alongado, e de cor luzentemente negra,  aquele até então rapaz desconhecido, Rafael de Jesus Silva, de 21 anos, disse fitando os olhos, “é aqui mesmo a casa de Carmo”, ao chegar no quilombo de Barra. O presidente da Associação do Desenvolvimento Comunitário Rural de Barra do Brumado  e líder das três comunidades quilombolas que deram origem a Rio de Contas, morava a oito lentos passos de onde o ônibus acabava de parar.
- Pode entrar... Educadamente e duma simplicidade sem medidas, Rafael abriu a porta da casa de seu tio Carmo Joaquim da Silva, o líder comunitário do quilombo.
- Vou chamar ele. Pode sentar, disse o moço negro.
Na sala, o som estava ligado em alguma rádio local, dois sofás, uma mesa mais adiante centrava-se num corredor que dava acesso aos quartos, e a cozinha compunha outro espaço da casa, situada quase que em frente à sala. Na parede, imagem colorida de Jesus Cristo, o padroeiro de Rio de Contas, em destaque para as chagas das mãos, estas que tocam o Sagrado Coração. 
- Está lavando roupa, mas já vem, disse Rafael junto à presença de seu irmão Daniel. Ambos moram com o tio desde que a mãe faleceu com problemas de coração, devido à picada do barbeiro, transmissor da doença de Chagas. Após lavar as mãos na cozinha, o líder, de 53 anos, aproximou-se lento, e de olhos bem atentos àquela visita.
- De qual movimento político você faz parte?, ele indagava sério e ereto fitando os olhos estrangeiros.

- De nenhum. Sou estudante de Comunicação, respondi.
Ele não esperava nenhuma visita interceptando a rotina diária de sua vida, tão pouco da comunidade que representa, em plena terça-feira no horário da refeição. Ele não havia sido comunicado de nada, e pelo fato de ser tomado de surpresa, após um longo papo, rente olhos nos olhos, embora ainda que movido por certa desconfiança, Seu Carmo, como é conhecido, deu um crédito de confiança à presença “estranha”. O estrangeirismo não representou obstáculo de aproximação, mas movia-se aos poucos despertando identidades e que pelas palavras da arte jornalística, encontrava espaço para explorar esse universo rico, mas carente de atenção. Isto porque, o ar rural associado à ausência nítida de desenvolvimento dava fortes indícios da falta de atenção das autoridades políticas quanto ao povoado.

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